Silvana Mota Ribeiro conta 40 anos e namora há dez. Se usar um vestido largo, uma suspeita propaga-se no seu local de trabalho — a Universidade do Minho. Da última vez, perguntou-lhe uma sorridente funcionária: “A senhora professora está de esperanças?” Ela arregalou muito os olhos, como lhe acontece sempre que fica horrorizada com qualquer coisa: “Tenho esperança de não estar!”
O sociólogo João Teixeira Lopes, a celebrar 45 anos dentro de dias, usa a expressão “geração interrompida”: “Viveu uma promessa de estabilidade. Conseguiu ter pequenas margens de conforto. Foi apanhada pela crise numa idade em que, num instante, se pode tornar obsoleta, descartável.”O tempo é de sobrecarga fiscal, cortes salariais, elevada taxa de desemprego, recuo na protecção social. “As dificuldades económicas trouxeram ao de cima dificuldades relacionais”, prossegue Teixeira Lopes. E, mesmo assim, pela primeira vez desde o 25 de Abril de 1974, o número de divórcios baixou. Muitos têm filhos e “ficam em pânico quando chega o envelope do gás ou da electricidade”.Não cresceram tão mentalizados para o sacrifício como os pais, amiúde focados na sobrevivência. Nem estão preparados para enfrentar a precariedade, como a geração seguinte, que nada mais conhece. “É uma luta do caraças”, suspira a técnica psicossocial Inácia Cruz, de 37 anos. “Primeiro, já temos alguma idade. Depois, mistura-se o que imaginamos com o que conseguimos.”Trabalhou com crianças e jovens de bairros periféricos, mães adolescentes, doentes mentais, sem-abrigo e, um dia, percebeu-se desempregada, extenuada, descomprometida com a sua vida pessoal. Recompôs-se. Faz oficinas criativas, dinamiza jogos teatrais, é contadora de histórias, mas ainda não consegue viver só do seu trabalho, acha que ainda não encontrou forma de o promover, como fazem os amigos mais novos. E dá por si a viver num quarto arrendado e a socorrer-se da mãe.Inácia acredita que “é possível viver dos sonhos”, mas todos os dias sente o quanto isso custa. Gostava de perceber para onde tudo isto a leva. Por vezes, pergunta-se: “Onde estarei daqui a cinco anos? Gostava de ter um espaço para trabalhar na educação pela arte, um companheiro tranquilo no compromisso, filhos. É muito difícil…” Sem estabilidade, tudo se adia, tudo, até o amor. Tem “não relações” ou “relações não convencionais”.A forma de encarar o amor diversificou-se. Discursos tradicionais e progressistas misturam-se, sobrepõem-se, até dentro da mesma pessoa. Enquanto socióloga dos estilos de vida, Silvana Mota Ribeiro procura tendências e uma parece-lhe evidente: “Esta geração tem muito mais escolha do que a anterior”. “Quantas pessoas agora têm uma relação estável com alguém que mora noutro país?”, exemplifica. “As pessoas encontram-se voando. A relação à distância já não é um absurdo, uma coisa da emigração, do tempo em que os homens iam e as mulheres ficavam.”Os pais de Silvana ainda a imaginaram a chegar virgem ao casamento — era isso que se esperava das raparigas —, mas ela, como muitas mulheres da idade dela, não pensa em casamento e nunca se sentiu “uma atrevida” por meter conversa com um rapaz que lhe despertasse interesse numa festa. “A minha geração desenvolveu o que era ainda um discurso em potência em meados dos anos 80. Tomou em mão o dar o primeiro passo, o primeiro beijo.”
Vulgarizou-se o divórcio, a união de facto, a família recomposta, legalizou-se o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, apesar disso tudo, o “modelo ideal” resiste: um homem e uma mulher entendidos como diferentes e complementares. E, mal se casam, começa a pergunta: “Então, quando têm um filho?”A pressão não é igual para homens e para mulheres e isso, defende Silvana Mota Ribeiro, não tem só a ver com relógio biológico. Se o homem disser que um bebé é uma maçada, que prejudica a carreira, tolera-se. Se for a mulher, nem pensar. A mulher continua a ser vista como cuidadora. “Não és uma mulher completa!”, dir-lhe-ão. “E depois? Quem vai cuidar de ti quando fores velha?”Uma mulher tem de apresentar uma razão externa — é infértil, não tem companheiro, o emprego fica em risco. Não chega dizer: “Não quero.” Silvana diz. E ao fim de tantos anos a mãe dela ainda lhe pergunta: “Mas isso é para sempre? Não pensas em ter um dia?” E ela responde-lhe: “Se calhar não. Estou bem assim. Por que hei-de mudar, se estou bem assim?” E a mãe começa a falar nas alegrias da maternidade. “Ai, o que estás a perder! Sabes lá que é ser mãe. É uma coisa superior a tudo. Vais arrepender-te. Olha que o tempo passa. Já tens 40 anos!”Fala na sua opção com cuidado, sobretudo com amigas que sabe pressionadas para serem “mães perfeitas”. Sabe que o seu discurso tende a ser mal percebido. E não quer que a vejam como carreirista, egoísta, sem amor para dar. “Quando tens um filho, nunca mais és independente”, diz. “Isto é uma coisa muito grande para perder. Tens uma criança e és responsável por ela para sempre. Nunca mais tens a tua vida só para ti. Não podes partir. Não te podes fazer ao mundo.”A Geração X não desistiu de ter filhos. Tem cada vez menos e cada vez mais tarde. Segundo o último Inquérito à Fecundidade, a maior parte gostaria de ter duas crianças, mas acaba por ter uma. Foi-se alargando a escolarização, atrasando a entrada no mercado laboral, precarizando a relação com o trabalho e às costas da mulher continuou o grosso do trabalho doméstico. Já não é como na geração anterior, mas na maior parte das vezes ainda são elas que cozinham, limpam, tratam da roupa. Poucos homens gozam a licença de parentalidade para lá do obrigatório.O lugar dos fraldários é nas casas de banho das mulheres. Isso nunca foi um problema com que Abel se deparasse. Deixava isso aos cuidados da mãe do filho, agora com cinco anos, que só vê de 15 em 15 dias.Luís Branco, de certo modo um dos ícones da “geração rasca”, tem uma filha de nove meses e uma enteada de nove anos e não tem conta às fraldas que mudou. Compete-lhe dar banho à menina e adormecê-la todas as noites. Ele trata do jantar e da louça e a companheira trata da roupa. A mulher-a-dias trata do resto.Nem só por vontade masculina a paridade assume contornos de história de excepção. Como mostram os estudos da socióloga Margarida Mesquita, com maior frequência os homens trabalham por turnos, trabalham mais horas, têm dois trabalhos. O “novo pai” também sente culpa por ter pouco tempo para os filhos e, por vezes, só não participa mais porque a mulher não deixa.“Se um [filho] ficar doente, só confio em mim”, ri-se a dramaturga, encenadora e actriz Marta Freitas. Tem duas crianças de 11 e 9 anos. “Acho que os pais estão num desequilíbrio muito grande em relação a forma como são pais. Têm de trabalhar muito e querem muito estar presentes e acabam por interferir demais.” Faz parte da associação de pais. Vê como alguns afrontam professores porque querem mais trabalhos de casa, menos trabalhos de casa, zero trabalhos de casa.“Acho que minha geração levou uma chicotada”, resume aquela profissional do teatro, que antes estudou psicologia clínica. “Vive uma mudança muito grande. As perturbações de ansiedade — os ansiolíticos, os antidepressivos — têm muito a ver com isso. Estávamos habituados a perceber a vida de uma forma muito linear. Não havia esta azáfama. Parece que está tudo em causa. As pessoas têm medo. Parece que virou tudo ao contrário. O que aprendeste como filha já não podes transmitir aos teus filhos porque esse mundo já não existe.”Sem a retaguarda familiar que existia noutros tempos, pressionada para trabalhar cada vez mais horas por cada vez menos dinheiro, muitos arrastam os filhos de actividade em actividade. Nesta ânsia de querer preparar os filhos para tudo, e já com os pais a precisar de apoio, parte da Geração X vai-se esquecendo de si própria.
GERAÇÃO 45-64: Vinte anos para gozar a vida de reformado
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