Inverteu-se a linha ideológica da reforma educativa: A burra começou a mijar para frente e o Homem a atirar para trás.
Ao tomar conhecimento do falecimento de um dos principais reformadores e impulsionadores do processo democratizador do sistema educativo português (Prof. Doutor Veiga Simão), esta é a minha primeira interpretação socioeducativa e sociopolítica sobre a evolução e/ou retrocesso da educação.
O contexto que se vive hoje transporta-me para o passado, cujas referências históricas, há mais de 40 anos, eram relatadas nos termos que se seguem:
"...Num contexto opressor e de isolamento do país, também marcado pelo descontentamento crescente do corpo docente e pelo afastamento político e profissional de docentes e investigadores, caminhava-se para a consciencialização da falta de um enquadramento institucional e organizacional adequado, bem como da falta de capacidade para se alterar o regime de administração e de financiamento das instituições de ensino superior, o qual era fortemente dominado por um número reduzido de cátedras que não correspondiam às exigências da crescente renovação e maturidade científica...
...A este propósito e a partir da constatação de que “as instituições universitárias não se auto-reformam”, defendia Miller Guerra (1969) que "haveria necessidade de se fazer diferente e de raiz, ou seja, de se criar algo de novo, em locais novos e com outros intervenientes", referência esta que, passados mais de 40 anos, parece continuar a ser igualmente válida, a fazer sentido e de relevante interesse para o desenvolvimento do ensino superior em Portugal". (Excerto da dissertação de mestrado em Administração e Gestão Pública, Univ. de Aveiro, sob o tema: Estruturas Organizacionais e de Gestão do Ensino Superior - Pereira, J.)
Face a este contexto e à situação atual da educação e do ensino superior em Portugal, recordo-me que, na minha aldeia (Gôve - Baião), costumava ouvir dizer que "para trás só mija a burra". No entanto, face à situação atual de crise social e económica, face à situação atual da educação e, mais grave, face ao pensamento ideológico daí decorrente e facilmente generalizado e reintroduzido na cabeça das famílias socioeconomicamente mais fragilizadas, começo a ficar muito preocupado e a pensar seriamente que os burros começaram a mijar para a frente e os seres humanos a atirar para trás.
Apesar de gostar de estudar e de trabalhar (há cerca de 20 anos) as questões e problemáticas socioeducativas e socioeconómicas, estou consciente de que pouco ou nada sei de educação, mas como sempre gostei de ir pesquisando e aprendendo, procuro estudar a evolução das organizações e reconhecer o trabalho daqueles que, de uma forma ou de outra, nos permitiram e permitem dar um pequeno salto social, educativo, cultural e socioeconómico. No entanto, não deixo de ser apenas mais um "filho de Abril" e um fruto dos pequenos saltos socioeducativos conseguidos por via dos apoios do Estado Social (subsídios e bolsas de estudo), sendo por isso que sempre dei comigo a tomar o lado dos mais frágeis e ainda recentemente a discordar da "burla social e financeira" referida pelo Dr. Medina Carreira e excelentemente desmontada e contrariada pelo Professor Doutor Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra.
Não podemos permitir que se volte a repetir a história destrutiva da educação e muito menos que se descredibilize ou enferruge a chave do desenvolvimento.
Educação é a chave para um desenvolvimento duradouro
- A educação combate a pobreza;
- A educação promove a igualdade de género;
- A educação reduz a mortalidade infantil;
- A educação ajuda melhorar a saúde materna/paterna;
- A educação ajuda a combater doenças preveníveis;
- A educação ajuda a garantir a sustentabilidade ambiental;
- A educação contribui para o desenvolvimento global.
Discordei e discordo da linha ideológica, retrogada e economicista, apregoada e mal esclarecida recentemente pelo Dr. Medina Carreira num programa televisivo ("Olhos nos Olhos", da TVI), isto porque sempre tive, tenho e continuarei a ter a consciência tranquila de que, ao estudar com recurso aos apoios sociais, não burlei ninguém e estou hoje a contribuir para o retorno desse investimento em prol de outros que hoje passam por idênticas ou piores dificuldades socioeconómicas. Hoje reconheço que, sem esses instrumentos de apoio socioeconómico e socioeducativo, por mais inteligente e capaz que eu fosse, nunca teria conseguido progredir, passo a passo, nível a nível e muito menos chegar ao ensino superior, mesmo que trabalhando e estudando como sempre me vi obrigado a fazer.
Mesmo assim, sinto-me hoje um priveligiado, sendo por isso que há muito que constato e refiro que os realmente mais carenciados não chegam sequer ao 12.º ano, quanto mais ao ensino superior. Muitos foram e continuam a ser os familiares, colegas e amigos que nem sequer ao 9.º ano chegam, quer por falta de meios económicos, como pela débil e tardia tomada de consciência sobre a importância da educação para o desenvolvimento humano, familiar, social, económico e mesmo empreendedor e empresarial.
É por isso que estarei eternamente grato a todas as Mulheres e Homens que lutaram e lutam pela democratização da educação, da cultura, do ensino superior, da ciência, da tecnologia e do desenvolvimento humano e social.
É nesse contexto que gasto hoje um pouco deste fim-de-semana, a redigir estas breves notas e apontamentos, como forma de agradecimento e particular homenagem ao Professor Doutor Veiga Simão, com quem me cruzei meia dúzia de vezes nos tempos de estudante e de dirigente associativo do ensino superior, nomeadamente em defesa e representação dos estudantes economicamente mais carenciados/bolseiros.
Sempre senti que o Professor Veiga Simão era um grande defensor da escola pública e da democratização da educação e do ensino superior. Por isso, muito obrigado!
Apesar do forte desenvolvimento económico que caraterizou a década de 60, o país vivia submetido ao regime ditatorial de Salazar (1946-1968), marcado por um clima de tensão constante, sobretudo influenciado pelos opositores à Guerra Colonial, pela censura à imprensa e às manifestações culturais, pela perseguição a todos que se opusessem ao regime, bem como pelas movimentações estudantis que tiveram sempre uma ação crítica sobre as reformas do ensino superior e que exerciam influência sobre a sociedade portuguesa em geral.
A partir da década de 60 passa a ser reforçada a acção social escolar, bem como a criação de programas destinados à educação de adultos, nomeadamente pela via do “Plano de Educação Popular”, sendo implementados os “Cursos de Educação de Adultos” e a Campanha Nacional de Educação de Adultos”, medidas estas lançadas durante o mandato do Ministro da Educação Nacional Pires de Lima (1947–1955). Estas medidas mereceram um forte aplauso e largos elogios por parte da Assembleia Nacional e viriam a estar “na base de uma renovação da situação escolar portuguesa que viria a servir de ponto de partida para a transformação que iria processar-se nos anos próximos” (Carvalho R. , 1986, p. 791).
Quando Marcelo Caetano chegou à chefia do Governo (1968-1974) a situação em que se encontrava o ensino superior e a investigação em Portugal faz-me pensar nos dias de hoje, tendo sido na década de 60 retratada, por Fernando Dias Agudo, nos seguintes termos: “Assim, com verbas demasiado baixas, ausência de cursos regulares para pós-graduados, núcleos de investigação de dimensão inferior à dimensão crítica (à parte uma ou outra excepção), professores sobrecarregados com trabalho docente e muitos ocupados ainda em actividades estranhas à Universidade, a nossa produção científica ainda depende muito do espírito de dedicação de um ou outro professor e, por isso, embora haja alguns centros de excelência, não pode deixar de se apresentar com um nível inferior ao que seria desejável — com prejuízo do próprio ensino que a universidade deve ministrar e do papel que lhe devia caber na formação do escol de investigadores de que o País tanto necessita para o seu desenvolvimento económico e social” (Dias Agudo, 1968, p. 143).
De entre os principais problemas que afetavam a investigação universitária, destaca-se a perceção da falta de investigadores que viriam a comprometer as necessidades futuras do país. Como demonstra João Caraça, “quando se trata de incrementar o esforço em I&D, o principal constrangimento não se encontra na dificuldade de aumentar os recursos financeiros, mas sim na inexistência de potencial humano qualificado e de um enquadramento institucional e organizacional adequado” (Caraça, Conceição, & Heitor, 1996, p. 1210).
Entre 1969 e 1974, período que culminou na revolução democrática do 25 de Abril, foram surgindo algumas transformações significativas no que respeita à relação do Estado com as instituições de ensino superior, sendo de destacar a reforma de 1973 delineada pelo Ministro da Educação, do Governo de Marcelo Caetano, Prof. Veiga Simão. Numa fase inicial, o Ministro Veiga Simão apresenta as suas ideias políticas em dois documentos de trabalho, o que veio a proporcionar uma ampla e aberta discussão antes da sua publicação. Uma das propostas abordava o “Projeto do Sistema Escolar” e outra especificamente as “Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior”, documentos estes que viriam a tomar a forma de Lei em julho de 1973 (Decreto-lei n.º 5/73, de 25 de Julho – “Reforma Veiga Simão”.
Logo no discurso de tomada de posse, em janeiro de 1970, o Ministro da Educação Nacional, Veiga Simão, tornava claras as orientações políticas fundamentais que pretendia vincular ao seu mandato, referindo que:
“A educação é o problema cimeiro, a alma motora, o meio consciencializante, por excelência, desse espírito revolucionário. […] A educação é o veículo poderoso e essencial que toma possível a vida humana ser digna de ser vivida, facilitando todo um processo de justiça social, inerente a qualquer fórmula de melhoria da condição do homem. Educar todos os portugueses, onde quer que se encontrem, na aldeia escondida ou na cidade industrializada, na savana seca e ignota ou na lezíria verdejante, é princípio sagrado de valor absoluto e de transcendente importância a escala nacional" (Simão J. , 1973, p. 12).
Mas a Universidade insere-se neste quadro como um gerador imprescindível, elemento fundamental para a resolução de todos os problemas apontados, porque há-de ser viveiro de professores de todos os graus de ensino, escola de formação de cientistas e técnicos, centro dinâmico de alta cultura humanística e refúgio da plena e indefectível independência do espírito. […] A reforma da Universidade constitui por isso a preocupação cimeira deste Ministério e, ouvidos todos os seus elementos representativos, serão ensaiadas soluções que lhe assegurem a posição de vanguarda nos domínios do pensamento e lhe confiram uma eminente dignidade" (Simão J. , 1973, p. 16).
O mandato de Veiga Simão tinha como um dos lemas vencer a “grande, urgente e decisiva batalha da educação” (Carvalho, 1986, p. 887), sendo que, no contexto do sistema educativo, o ministro atribuía especial relevância à reforma da universidade, na qual via um sistema de ensino que praticamente se reduzia à tarefa de formação de professores do ensino secundário.
Veiga Simão, determinado em atingir os seus objetivos, determinou implementar o regime de concessão de equivalência ao grau de doutor obtido no estrangeiro, lançou a diversificação e expansão do ensino superior, mediante a criação de novas universidades e institutos politécnicos e fez aprovar a Lei de Bases do Sistema Educativo de 1973.
Alguns analistas sociais (Stoer (1986) e Grácio, R. (1983)), consideram que o aparecimento da Reforma Veiga Simão, nesta ocasição crucial, constitui um ponto central na compleição de uma nova organização política e económica das forças sociais, correspondendo esta a uma reforma estrutural e estratégica, cujos objetivos ultrapassam o próprio sistema educativo.
Hoje, constatamos que os nossos "governantes" e "representantes" políticos têm andado demasiadamente embrenhados ou distraídos em torno de questões empresariais e financeiras que até se esquecem das questões humanas, sociais, educativas e socioeconómicas.
Atendendo a que aos políticos e governantes compete refletir, debater e tomar as melhores decisões para a sociedade e em defesa do supremo interesse público, poderemos concluir que estarão a contribuir, conscientemente ou inconscientemente, ativamente ou passivamente, para a execução de um crime socioeducativo e socioeconómico.
Será que algum dia teremos a capacidade e responsabilidade de penalisar e/ou criminalizar os nossos políticos, representantes e governantes pelos males que provocam nas pessoas e no País?
Espero que sim!
Temos a obrigação de pensar não só sobre o presente, mas sobretudo no sentido de planear, precaver e preparar o futuro.
Para isso, é necessário analisar devidamente a situação passada e presente, determinar objetivos, assumir compromissos e precaver o futuro de todos e não só de alguns.
John Goddard (2009, p. 10), tomando por base o modelo integrado de objectivos e compromissos (“Engagement with Society”) do ensino superior para com a sociedade, desenvolvido pelo professor Marilyn Wedgwood (2003) (2006), defende que, ao cruzarmos os quatro vetores de análise das instituições (ensino, investigação, societal e académico), será possível projectar vários cenários sobre o ensino superior, afirmando o autor que se tem vindo a perder a visão sobre os propósitos em que se ergueram as universidades durante séculos, sendo que, face ao actual contexto de restrições financeiras e de redefinição do papel dos Estados, as relações do ensino superior com a sociedade assumem, cada vez mais, uma maior importância e visibilidade.
Em função do foco da instituição, da sua história, da sua antiguidade e da sua estratégia, a incidência de actividade poderá ser maior num ou noutro quadrante, resultando daí diferentes modos de posicionamento, de acção/intervenção, de gestão/administração e mesmo de financiamento, conforme se pode compreender pela figura que se segue:
Fonte: M. Wedgwood, Manchester Metropolitan University. In: Goddard, John (2009).